quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Porta romana inédita na Rua Capitão João Francisco de Sousa

Não vislumbramos outro título para estas portas romanas senão o da ênfase do seu ineditismo. A ciência arqueológica também se faz ou pratica, já o dissemos várias vezes, com a observação atenta daquilo que existe e está ao dispor do olhar acutilante, sem necessidade, à priori, de realizar qualquer tipo de prospecção que interfira directamente - como quando se procede a uma escavação – com o bem cultural a estudar.
Após as obras de reabilitação urbana de parte do centro histórico de Beja (ver extracto da planta)[1], levadas a cabo pela câmara municipal, tornou-se já um hábito público (o que não se faz para encurtar caminho), bastante salutar, “desembocar”, a partir da rua Capitão João Francisco de Sousa [a do antigo posto de Turismo, agora a funcionar no castelo] e do Jardim do “Bacalhau” (D), na rua do Sembrano, pelo nº72 de polícia, e vice-versa. O espaço arquitectónico, abobadado, provavelmente de seiscentos ou setecentos[2], que rompeu com a muralha e permite essa comunicação (A), integra o piso térreo do grande edifício do Clube Bejense (nº1). De fora para dentro, o percurso pedonal permite a visita, intramuros, ao núcleo museológico das ruínas romanas da rua do Sembrano (nº4) e ao Museu Regional (nº3).
De fora, sobre os restos da barbacã (A), uma recentíssima escadaria metálica que sacrificou, em parte (e que precisa ela própria de ser sacrificada, mudando ligeiramente de posição), um pequeno arco de terracota com 0,80m de espessura e 1,25m de vão (não dizemos de diâmetro porque o arco não nos parece de volta inteira), só por muito pouco não destruiu também o que resta de um dos pés direitos, o do lado esquerdo, do que parece ser mais uma das entradas romanas da muralha. O outro pé direito, felizmente, encontrava-se, desde há muito tempo, escondido pela justaposição de uma parede transversal ao paramento fortificado (ver fotografia de 1982). Trata-se, sem qualquer dúvida, de elementos arquitectónicos sobrepostos (ver desenhos e fotografias), muito bem aparelhados, em granito, com o característico almofadado das construções romanas, cujos vestígios mais antigos, por um lado, e influências, por outro, se podem observar, por exemplo, respectivamente, nas portas de Évora e de Avis, em Beja, no arco de Bobadela, em Oliveira do Hospital, e nas cantarias da rua de S. Gregório/ Travessa Funda[3] e da igreja da Misericórdia/açougue, também em Beja. O vão atinge os 2,70m, menor do que os das portas de Avis e de Évora, respectivamente, com cerca de 3,80m e 3,65m, e permite uma leitura perfeita da sua funcionalidade – faltar-lhe-ão dois ou mais “blocos” aparelhados em cada pé direito, mas há igualmente que ter em conta aqueles que se possam encontrar sob a estrutura visível adjacente à barbacã. Cada bloco afeiçoado situa-se entre 0,60m e 0,95m de comprimento por 0,45m de altura; cada pé direito apresenta três blocos sobrepostos, com as junções perfeitamente niveladas entre si, e hipoteticamente terão uma espessura (medida para o interior da muralha) de entre o,75m a 0,80m, a mesma que o arco de tijolo fragmentado denuncia, similar à das portas de Avis e de Évora. O vestígio deste arco aponta para outra funcionalidade mais restritiva do acesso à muralha, cremos que do período medieval[4], como se de uma porta falsa se tratasse – o seu vão atingia 1,25m, suficiente para uma serventia controlada e cómoda com o exterior, permitindo a passagem desafogada de um cavaleiro.
Urge, portanto, após a identificação do bem patrimonial, no seu conjunto, proceder à incontornável prospecção arqueológica do local, prospecção que, julgamos, não acarretará grandes despesas, nem ocupará muito tempo, mas que será sempre necessária para comprovar se as estruturas se encontram ou não, desde a sua origem, in situ, isto é, no seu primeiro local de aplicação e com a função que designámos, a de portas romanas da cidade.
Quem sabe se não se encontrarão aduelas ou outros elementos arquitectónicos de relevância artística no local? Há, pois, que avançar com esse estudo, para o qual nos disponibilizamos, integrando a equipa que o município julgue por bem constituir, no intuito de devolver aos bejenses mais uma peça singular da sua vetusta cidade. Beja passará a ter, caso se comprove a nossa hipótese, além das quatro portas romanas já conhecidas – de Mértola, Avis, Évora e de “Vipasca” (a da antiga rua do Buraco ou dr. Brito Camacho)[5] – uma outra, a quinta porta romana, posicionada ao que parece num pano rectilíneo da muralha, pois os elementos visíveis não apresentam os rebordos perpendiculares, exteriores, semelhantes aos que existem quando a muralha ou as torres avançam em relação ao seu plano de inserção.
Contudo, este posicionamento, entre as portas de “Vipasca” e de Mértola, dada a grande proximidade entre si, não é totalmente compreensível, a não ser que, por hipótese, e as análises morfológica e arqueológica poderão reforçá-la, esta porta romana seja anterior às restantes, daí o seu desaparecimento prematuro, ainda no período romano. Notam-se bem, ao longo da base da muralha de Beja, os blocos maiores, alguns com mais de um metro de comprimento, essencialmente de gabro, pórfiro e granito, com pedra menos volumosa nos níveis superiores, caracterizando um aparelho incerto (opus incertum) ao qual se misturaram outros materiais, como o mármore de Trigaches, tijolo, argamassa no género do formigão, etc., de proveniência e épocas diversas. É evidente que tal heterogeneidade de materiais denuncia, além da permanente operacionalidade da fortificação, os períodos cruciais da sua reconstrução.
São às dezenas a quantidade de elementos arquitectónicos e outros, fragmentados ou não, de utilização diversa, aras, cupas, etc., reutilizados na reedificação e reparação da muralha ao longo dos séculos. Deste troço (A) foi retirado, em 1992, sob informação nossa, para o núcleo visigótico do Museu Regional de Beja, um ábaco de pilastra adossada, mas ainda lá ficaram mais três impostas, uma delas com decoração losangular pouco usual (ver desenhos e nota3). Uma das cabeças de touro fragmentadas também se encontra colocada numa das torres da rua Capitão João F. de Sousa ( a antiga do Captivo), pelo que toda essa área, caso o município torne mais visíveis as estruturas da provável porta romana, sairá extremamente valorizada.
Por último gostaríamos de recordar mais uma vez, remetendo para as crónicas que escrevemos em 1996, sobre a demolição, em 1919, da Igreja de S. João Baptista (no local do largo de S. João), que as “Portas Romanas de Vipasca” (nome que lhes demos), ou de Santa Catarina (como vêm designadas, mas sem indicação de romanas, no citado Plano de Salvaguarda da Cidade, pois ainda ninguém sabia que, também ali, tinha havido umas portas romanas), situadas na rua Dr. Brito Camacho (antiga do “Buraco” – por causa de um buraco feito no pano curvo da muralha; ou do “Muro Baixo” – após a queda do arco imperfeito do dito buraco), foram, como tentámos provar, sem escavação arqueológica (esta, sim, se um dia se pretendesse realizar, seria de operacionalidade problemática naquela zona), demolidas após a “reconquista” cristã. Queremos dizer, aliás, defendermo-nos, com a possibilidade de que algum deste material de demolição, nomeadamente dos elementos aparelhados das “Portas de Vipasca”, possa ter sido reutilizado no troço em estudo. Ora, esta hipótese, remeteria o funcionamento do portal, agora identificado pelos seus restos como romano, para o período medieval cristão e português, o que não lhe retiraria por certo a importância. Esperemos que se consiga fazer uma leitura correcta destes elementos arquitectónicos que são da maior importância para a história da fortificação e urbanização romanas de Pax Ivlia/Beja.

Cf. BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Porta romana inédita em Beja" in Diário do Alentejo de 27 de Outubro de 2006.

[1] O extracto da planta, readaptada por nós, provém da p.135 do Plano de Salvaguarda e Recuperação do Centro Histórico de Beja, em 1981 (bons tempos!), e respeita aos edifícios propostos para classificação como Monumento Nacional, Imóvel de Interesse Público e Imóvel de Interesse Concelhio, com a delimitação da respectiva área de protecção. Sinalizados a negro, ainda sem numeração, mas agora colocada por nós, lá estão o nº1, correspondendo ao Clube Bejense e o nº2, infelizmente demolido na voragem do Programa Polis.
[2] Espaço que poderia ser aproveitado para exposições de temporárias, não de objectos, mas de painéis devidamente elaborados sobre a história da cidade ou da freguesia onde se insere. Numa planta geral da cidade, o visitante, local ou turista, tomaria contacto com a sua posição relativamente a outros pontos de interesse patrimonial.
[3] A tal área onde se pensa que existiu, segundo investigação de Jorge Alarcão, com base na topografia do terreno e pela descrição setecentista de Félix Caetano da Silva, o teatro romano de Pax Ivlia. [De uma das cartas que o autor nos endereçou, salvo erro em 1991].
[4] Quando dizemos medieval, entendemo-lo como visigodo, islâmico ou cristão português. Os tijolos do arco não nos parecem assim tão antigos, mas quantas coisas destas, no seu aspecto funcional, não são o reflexo de outras mais antigas?
[5] Cf. BORRELA, Leonel – “A igreja de S. João Baptista” I, II e III; “Ao longo da rua do Cativo”; “Imediações da Praça de Santa Catarina” e “O último grande edifício romano de Pax Ivlia I”. In Diário do Alentejo de Nov./Dez de 1995; Agosto de 1996 e Junho de 2006.