sexta-feira, 28 de maio de 2010

O Cupido desaparecido da villa romana dos Pisões, em Beja

O Cupido desaparecido da villa romana dos Pisões


Cupido, filho de Vénus, a deusa da beleza e do amor, e de Mercúrio, o mensageiro alado dos deuses, é na mitologia romana o mesmo que Eros, filho de Afrodite, também deusa da beleza e do amor, e de Ares, o deus da guerra, é na mitologia grega. Representa a harmonia perfeita entre as paixões do amor e da guerra, esta subordinada àquele, antecipando em milhares de anos a frase e o conceito de “Make love, not war” dos Beatles, da sua época e da sua entusiástica influência.
Cupido, em criança, surpreendia tudo e todos com a sua feliz traquinice. Dotado de asas, tal como seu pai romano, e do bélico aparato de arcos e flechas, de seu avô grego, pôs a facilidade e rapidez de movimento ao serviço da celebração do amor entre os amantes. Escolhia normalmente os mais solitários e lançava-lhes setas directamente aos corações impregnando-os de uma paixão sem remédio, daqui as representações posteriores de uma seta atravessando o coração, divulgadas essencialmente a partir do século XVII e com maior expressividade nos postais ilustrados do século passado.
Cupido, já adulto, tornar-se-ia o mais belo dos deuses, seduzindo mesmo os homens mais duros a abraçarem os sentimentos mais nobres. Como deus, também se perdeu de amores, sendo proverbial, entre os eruditos da mitologia greco-romana, o seu inexcedível amor pela bela Psyché – retrato metafórico da alma que procura, como corpo seu, o corpo do amante, numa conjugação perfeita. Este deus do amor tem sido, de entre os deuses, um dos grandes preferidos da Arte ao longo da história do ocidente europeu. Não é de estranhar vê-lo tantas vezes associado, através das suas flechadas amorosas, ao dia de S. Valentim, protector cristão dos apaixonados.
Quase perdido durante a Idade Média, o espírito humanista, emergente a partir dos séculos XIII e XIV, em Itália, recupera para a arte e para a escrita a cultura clássica, reaparecendo o Cupido, em parte transformado num anjo atencioso, menos narcísico nos seus actos, mais confidente e próximo dos humanos. Através da mentalidade do período clássico barroco, podemos, de entre centenas de obras de arte, observá-lo numa gravura aberta por Jean Massard (1740-1822), concebida por Charles Eisen (1720-1778), para as Cartas Portuguesas interpretadas pelo poeta Claude-Joseph Dorat (1734-1780)[1]. O pormenor da gravura, sobre a célebre janela de Mértola, cativa-nos pela flagrante proximidade entre Cupido e Mariana – se houve seta não sabemos, mas parece ter havido um olhar intenso e sintomático (ao contrário do que proíbe a mitologia, pois um deus não se olhava), além de uma cúmplice troca de palavras.

Expostos, ainda que parcialmente, a figura e os atributos de Cupido, interessa, agora, regressarmos à realidade bejense. Faz tempo, já com algum significado, vai para cerca de dez anos, que desapareceu do Posto de Turismo, então situado na Rua Capitão João Francisco de Sousa, uma bela escultura romana, proveniente da estação arqueológica da Villa Romana de Pisões. A escultura de Cupido deitado (veja-se a fotografia que tomámos aquando da sua exposição, há pouco mais de vinte anos, numa feira de Agosto, em Beja), cinzelada em alto-relevo, a partir de um pequeno bloco de mármore branco de Vila Viçosa ou Estremoz, com perto de 50cm de comprimento, desapareceu durante umas obras de reabilitação do local referido e nunca mais se soube nada dela. Esta reprodução fotográfica tem o objectivo de a tornar conhecida do maior número de pessoas, pois pode haver alguém que a tenha visto noutro local e denuncie a sua posse ilegal. É o que se pode fazer, por agora, sem esquecermos que a Internet também pode e deve ser utilizada na sua busca.
Ignoramos qualquer trabalho de investigação artístico, histórico, ou de outra natureza, sobre este Cupido que, apesar de fragmentado, em três ou quatro partes, permitia, contudo, como se documenta, a leitura fiel da totalidade da obra e dos seus adereços identificativos: ainda criança, cumpridos os calorosos cuidados de mais uma jornada amorosa, descansa e adormece, por fim, totalmente nu, Cupido, protegendo entre os seus braços a aljava com as setas; está sereno, com o corpo ligeiramente reclinado sobre o seu lado esquerdo; um lagarto acompanha-o no repouso.
O elemento mais enigmático, cuja presença não é fácil explicar, é o lagarto, parado, que, tal como Cupido, parece adormecido ou, talvez, expectante pelo acordar do pequeno deus. Na religião cristã o lagarto está associado à vigília protectora do Bem – normalmente repele as serpentes, símbolos do Mal. Mas, no período romano, este lagarto parece representar, julgamos, todos aqueles que não se movem, que estão em estado letárgico no amor, e que esperam pelo acordar de quem os pode socorrer – a não ser que ali, pela Villa de Gaio Atilio Gordo, a deusa Ceres, criticada pelo riso de uma criança, tal como a ironizara Estélio, a quem transformou em lagarto, tivesse pedido um voto de confiança – uma criança tão mansa quanto um lagarto - ao proprietário pelos alimentos que ela exageradamente consumia.
A Villa romana de Pisoes, cujos vestígios já se conheciam, bem antes de se iniciar a sua prospecção, há pouco mais de 40 anos, sob a responsabilidade do arqueólogo bejense, Dr. Fernando Nunes Ribeiro (falecido em Maio de 2009), até princípios de 1974, é datável dos séculos I a IV, sendo de admitir uma breve ocupação visigoda. Cremos que de 1974, ou mais precisamente, de 1976 até 1979 houve uma equipa na direcção da prospecção, constituída por Fernando Nunes, José Luís Soares, Rui Parreira, Monge Soares e Mário L. Sardica. Ainda foi objecto de prospecções posteriores, mas sem a continuidade e o interesse que antes tiveram. Justino M. de Almeida e Fernando B. Ferreira, publicam, em 1969, os primeiros resultados das prospecções; Fernando Nunes publica, ainda em 1972, um estudo, ainda o mais completo, sobre a Villa dos Pisões; José Luís Soares (também falecido em 2009) apresenta, em 1973, uma comunicação sobre um prato de terra sigillata com a sigla Mandatti; João Mário L. Sardica faz, em 1975, uma abordagem complementar às partes urbana, rústica e fructuária; enquanto Maria Luísa V. Costa dá a sua contribuição, em 1986, para o estudo da gramática decorativa dos mosaicos e da sua cronologia; a barragem de Pisões é também alvo de um estudo, em 1986, de António Carvalho Quintela e outros. Actualmente, a recepção turística, possui um pequeno centro de interpretação da casa senhorial romana, composta por mais de quarenta divisões… e não está tudo à vista.
Infelizmente, uma das melhores e mais ricas villae romanas do país, encontra-se, apesar de precariamente visitável, num progressivo estado de abandono. É urgente a organização de um museu de sítio que permita devolver condignamente às ruínas o seu riquíssimo espólio, antes que se perca e disperse ainda mais. É uma tristeza ver o descalabro em que se encontra o estado do valiosíssimo património arqueológico da região.
[1] Lettres d`une chanoinesse de Lsibonne[…]. A la Haye et […]Paris: Lambert, Jorry et Delalain, M.DCC.LXX.