quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Restos monumentais de Pax Ivlia I - Friso de ângulo com cabeças de touro.

Restos monumentais de Pax Julia (I)

A arquitectura romana dos edifícios religiosos, públicos e civis, era grandiosa, profusamente decorada com escultura, pintura, mosaico e estuques relevados e coloridos. Eram construções que glorificavam o imperador, as divindades e os grandes feitos de armas, queriam-se magnificentes e eternas.

O domínio de Roma estendia-se pelo mundo conhecido de então, chegando a integrar quase toda a Europa, boa parte da Ásia ocidental e todo o norte de África, distintas e longínquas partes do império interligadas pelo imenso Mediterrâneo.

Aqui, na província baixo alentejana, parte maior da antiga Lusitânia, cuja capital era Mérida, conservam Beja, Mértola, Vidigueira, Santiago do Cacém (Miróbriga), Grândola (Tróia) e Alcácer do Sal núcleos importantes daquele passado histórico, ainda mais valorizado por quanto se sabe ter sido Pax Julia a sede de um convento jurídico que se estendia para lá de Évora até aos limites de Scalabis (Santarém), a outra das três sedes em que se dividiu a Lusitânia.

É, essencialmente, a partir do século XVI, após a descoberta, na herdade da Lobeira, da famosa lápide votiva, dedicada por Pax Julia ao imperador Comodo, que Beja romana começa a sair do anonimato em que se encontrava - os achados ocasionais de grandes mármores trabalhados veiculam assim maior relevância, tendo de ser vistos com outros olhos, pois pertenciam àquela cidade onde se comemorara a paz luso-romana. Essa lápide, ainda hoje, depois de ter, desde o século XVI, figurado em todos os edifícios onde funcionou o município pacense, se encontra exposta no cimo da escadaria principal da actual Câmara Municipal à Praça da República.

Já no século XVIII, Félix Caetano da Silva, bejense, autor da História das Antiguidades de Beja, o padre Pires Nolasco nas suas memórias paroquiais e o bispo D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas nos falavam da grandeza, quantidade e antiguidade, das cabeças de touro, capitéis, fustes, frisos, escadarias e outras estruturas ainda subsistentes como sejam as portas de Avis, de Évora e de Mértola (não referindo, qualquer dos autores, a romana de "Santa Catarina» ou de "Vipasca», ali à Rua Dr. Brito Camacho, antiga do Buraco, porque naturalmente já estaria desactivada e destruída há muito tempo, abrindo-se uma outra, a medieval de Aljustrel também desapareci¬da na voragem das demolições levadas a cabo pelo camartelo do progresso durante a segunda metade do século XIX e seguinte)

À custa das demolições oitocentistas, avoluma-se ainda mais a já valiosa colecção arqueológica que Cenáculo organizara 100 anos antes no seu Museu Sesinando Cenáculo Pacense, um dos primeiros do seu género em Portugal, então instalado no antigo Colégio dos Jesuítas.

Infelizmente, as esculturas figurativas e outras peças que hoje deveriam estar em Beja, dada a sua raridade e qualidade de execução, e porque são de cá, encontram-se actualmente expostas no Claustro do Museu de Évora, cidade para onde Cenáculo levou então parte da "sua" colecção.

Agora, passados outros 100 anos, Beja continua a ver constantemente enriquecida a sua história sob domínio romano. Em 1982, descobria-se numa fossa de edificação antiga da Rua dos Infantes, no restaurante "Os Infantes", um grande capitel romano, de estilo compósito/coríntio, possivelmente o maior em volumetria da Península Ibérica, além de estruturas in situ , um fuste liso fragmentado e um outro capitel coríntio de folhas de acanto lisas; e, em 1995, pelo mês de Maio, durante obras de conservação de um muro e beneficiação exterior do quartel da GNR (antigo Colégio dos Jesuítas), encontraram-se mais um fragmento de cabeça de touro, um capitel informe, delineado e inacabado, além de um outro, corintizante também de tipologia rara para a cidade. Em suma, um rol de peças monumentais que passaremos a descrever.

Algumas das cabeças de touro da antiga Pax Julia, referimo-nos às mais monumentais, às duas de maior dimensão que se encontram expostas na galeria exterior do Museu Regional de Beja, entre capitéis compósitos e corintios e cornijas de que vos iremos falar, integram um conjunto de cerca de nove ou dez, dispersas pela muralha da cidade, Igreja de Santa Maria, Ermida de S. Sebastião (depósito de material lítico do Museu), Tanque do Cano e praça de armas do castelo.

Essas duas cabeças têm sido, ao que sabemos, vistas isoladamente, não se relacionando a sua função estrutural e decorativa com um determinado posicionamento no edifício a que pertenceria. Analisando, mesmo que superficialmente, uma das cabeças, constatamos que houve um desbaste lateral, profundo, sem dúvida muito posterior ao período romano, cuja intenção seria permitir com maior facilidade encaixá-la numa parede - sabe-se que as duas cabeças estavam colocadas na abside da demolida Igreja de S. João, orientadas para a antiga Rua do Touro (cf. "Iconografia Pacense” in Diário do Alentejo Setembro/Outubro de 95).

A outra mostra-nos uma cabeça quase sem "retoques" posteriores, provida no cimo de saliência rectangular destinada a suportar alguma coisa, talvez uma cornija ou outro elemento arquitectónico; o seu peito e espádua são fortes e bastante relevados do bloco paralelepipédico em que foram esculpidos, notando-se, à direita, boa parte da espádua de uma outra cabeça e peito há muito desaparecidos.

Segundo esta sumária análise, teríamos um bloco com duas cabeças salientes, de faces contíguas, perpendiculares entre si. No templo chamado de Minerva (século III d.C.), da cidade numida de Theveste (actual Tébessa) na Argélia, raro pela dis¬posição de dois frisos sobrepostos, profusamente decorados, podemos ver a representação de duas cabeças de touro baixo relevadas, uma em cada face do ângulo, sobre uma das colunas corintias de esquina; sobre as colunas seguintes, em cada face do templo, sobrepõe-se, sempre, uma cabeça de touro (cf. Vol. VII das Grandes Descobertas da Arqueologia, Planeta Agostini, Barcelona, 1988).

Haverá mais exemplos da utilização de um friso angular, assim lhe chamamos nós, com estas características de simetria; do tipo de edifício, público ou religioso, a que pertenceria, ou pertenceriam, algumas das cabeças de touro da cidade, nada sabemos, nem conhecemos a sua localização exacta, embora o espólio, amplamente reutilizado ao longo dos séculos, na área mais elevada aponte para os grandes edifícios do fórum, naturalmente situado entre o Convento da Conceição e o extremo contrário da Praça da República, junto à Igreja da Misericórdia.

Porém, no seio de tantas incertezas, uma observação nos parece correcta: pelo menos uma das cabeças de touro da cidade romana era perpendicular a uma outra do mesmo bloco constituindo um friso angular, raro no nosso País.






Cabeça de touro romana do Museu Regional de Beja. Tentativa de reconstituição de um friso de angulo com duas cabeças de touro. Altura 70 cm; largura 80 cm. Foto e desenho do autor

"Iconografia Pacense" in Diário do Alentejo 17 de Abril 1998

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