quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

UMA CABEÇA DE JÚPITER?







A cabeça romana de mármore que hoje divulgamos foi encontrada, em recolha de superfície, há cerca de vinte e cinco anos, numa estação arqueológica da freguesia de Baleizão, conhecida pelo nome de Lamarim. Adquirimo-la, então, antes que desaparecesse da cidade levada por algum estrangeiro ou curioso. A sua história ocasionou-lhe um percurso atribulado. Com efeito, um arqueólogo nosso conhecido - ao qual prestámos colaboração no início da prospecção arqueológica das ruínas romanas da Rua do Sembrano – nessa altura técnico superior dos Serviços de Arqueologia da Zona Sul e, mais tarde, professor na Universidade de Évora, ao saber da existência da peça pediu-no-la para a estudar e publicar, resultando dessa cedência o seu desaparecimento e, ao que parece, nunca chegou a ser publicada (se o foi, se alguém sabe de mais alguma coisa a seu respeito, agradecemos que nos diga, para corrigir este artigo).

Passaram-se quase vinte anos e, quando frequentámos, em 2003, o 4º semestre do curso de História da Universidade de Évora, integrámos uma das fotografias que possuíamos da referida cabeça num dos trabalhos práticos da cadeira de Métodos e Técnicas de Arqueologia, leccionada pelo Dr. Panagiotis Sarantopoulos que, surpreendido, nos informou que o referido exemplar estava guardado no laboratório de arqueologia. Abreviando: embora, aparentemente, nada obstasse a devolução da peça, a situação não se alterava, até que na sexta-feira passada teve, como se costuma dizer, quando tudo corre bem, um final feliz. Já a temos de novo… ao fim de vinte e cinco anos, e, agora, já todos os nossos leitores e investigadores a podem ver e estudar, neste caso, preferencialmente, melhor do que nós.

A cabeça de mármore branco, provavelmente de Estremoz, pesa 1,5 Kg e tem as seguintes dimensões máximas: Altura – 16 cm; Largura – 11 cm; Espessura ou profundidade – 7,5 cm. Segundo a Carta Corográfica de Portugal, Nº43-B Moura, de 1978, as coordenadas Gauss do achado correspondem a: M- 235,6; P- 121,4; Z- 190. Reutilizando o nosso texto relativo ao local, situado a 4000m a NNO de Baleizão, esclarecíamos, entre outros aspectos, que a toponímia Lamarim já nos referenciava terras de barro, alagadiças, praticamente intransitáveis durante a época das chuvas. Um barranco separa essa área da encosta que lhe fica a nascente, na qual se observam diversos muros, tégulae, ímbrices, mármores decorados, muita terra sigillata, fragmentos de lucernas, etc..

Inicialmente julgámos que a cabeça representava Sileno, fazendo jus à orelha comprida, de animal, e às barbas que poderiam caracterizar uma pessoa mais velha, como atributos identificáveis da figura mitológica que acompanha Baco como seu preceptor; poderia até ser um sátiro ou um fauno, dada a capacidade que estes entes da mitologia têm de se disfarçarem, ou de outros se disfarçarem neles, para conseguirem os seus objectivos. Estávamos, portanto, a colocar o trabalho artístico na senda greco-romana de Dionísio e Baco, festas, divertimentos, copos, volúpia, etc., hipótese que não seria exagerada dada a quantidade de tampas de sepultura romanas em forma de pipa dedicadas simbolicamente ao deus Baco. Mas, não nos parece que assim seja. Observando melhor a pequena escultura, vemos como ela de facto conserva no mundo artístico romano um determinado ideal de representação da arte helénica, um rosto vigoroso e sério, fora do comum dos mortais e dos deuses menores; a metade direita do rosto permite-nos ir mais longe na análise: a orelha é de facto animalesca, pontiaguda, tal como o chifre de carneiro que a envolve sobressaindo ligeiramente, e que na primeira leitura não identificámos. O trabalho de cinzel e de trépano permitiu, cremos, a execução de uma obra escultórica muito próxima das que se produziram no início do século II, ao tempo do imperador Adriano (117-138), lembrando o apurado trabalho das madeixas de cabelo soltas, quase vivas, porém idealizadas da escultura de Antínoo (Cf. “Historia de España”, tomo II, Dir. Ramón Menéndez Pidal, MADRID: Espasa Calpe, S. A., 1938. pp. 647-689), o escravo favorito de Adriano. Muitas outras esculturas apresentam um estilo semelhante, como a de Septímio Severo, exposta no Museu Capitolino, em Roma, embora esta seja do início do século III, pois não foram poucas as vezes que ao realismo romano sucedeu o ideal grego).

Consideramos que esses pormenores são suficientes para que possamos atribuir a cabeça do Lamarim a Júpiter, o deus máximo do panteão romano, numa das suas muitas metamorfoses, neste caso, provavelmente, como Júpiter-Amon. Segundo a mitologia, Júpiter, escapou à ira de Saturno, seu pai, e foi criado, escondido na ilha de Creta, pela cabra Amalteia, sua ama. Mais tarde, senhor do Céu e da Terra, haveria de perseguir os seus irmãos sob a figura de carneiro. Sempre que queria algo problemático disfarçava-se ora de Sátiro para conquistar Antíope, ora de Touro para arrebatar Europa, ora de Cisne, de Águia, enfim, dele tudo dependia, tinha um poder infinito. Júpiter foi ganhando entre os devotos qualidades inerentes às atribuições que lhe davam no campo, nas casas, na moral. Prestavam-lhe um culto de Estado, deus supremo do Capitólio, chamavam-lhe Optimus Maximus. Os egípcios acabaram por venerá-lo como Júpiter Amon, junção do seu deus Amon com o dos romanos, e o atributo que o distinguia era um par de chifres de carneiro, simbologia do Sol. Na Lusitânia foi grande o culto a Júpiter.

Outro aspecto muito importante, para se puder avaliar a devoção, a cultura e a economia dos povos desta região da Lusitânia, prende-se com a produção local desta e de outras esculturas. Jorge Alarcão esclarece-nos (“Portugal Romano”. Lisboa: Verbo, 1983. p. 211; acerca de Júpiter pp. 134,165,168, 170 e 179) que “Das estátuas de divindades, muitas são obras lusitanas; assim, as cabeças de Endovélico encontradas no santuário de São Miguel da Mota (Alandroal), atribuíveis ao século I d. C.; as duas cabeças de Conimbriga, representativas de Vénus ou Diana; talvez ainda a estátua de Vénus, de Santiago do Cacém, da qual, infelizmente, pouco resta. Os Silenos do teatro de Lisboa serão também locais.”. O trabalho de cinzel da cabeça de Júpiter (?) que estudamos foi abandonado quando a parte superior esquerda se separou, deixando ainda visível o tratamento menos minucioso e em bruto desse lado fracturado. Há mais de vinte anos identificámos uma villa na horta de Vale do Bispo, assim como o aqueduto romano que ainda hoje a serve e que deveria, há quase dois mil anos, servir com abundância de água a oficina de canteiro que lá funcionava. Há pouco mais de quinze anos o seu proprietário, sr. José Maria, já falecido, retirou da terra várias árulas de mármore branco, anepígrafes, apresentando uma delas por finalizar as molduras da base e da cornija. Ofereceram-nas ou venderam-nas, não se sabe a quem.

Considerados estes aspectos singulares de uma peça do património cultural que afinal não se perdeu, e que está longe de estar convenientemente estudada, esperemos que pelo menos estas achegas sirvam para reavivar o debate, há muito sumido, em torno da emergência da investigação do património cultural histórico e arqueológico da nossa região.



Cf. BORRELA, Leonel – “Iconografia Pacense - Uma cabeça de Júpiter?”, in Diário do Alentejo de 6 de Abril de 2007.







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