segunda-feira, 7 de setembro de 2009



ICONOGRAFIA PACENSE

TITO FLÁVIO VESPASIANO (69-79).

Roma mostrou ao mundo o seu poder militar, a extensão e a heterogeneidade do seu imenso território, a qualidade da sua administração política. Soube apreender e adaptar da cultura grega o que de melhor havia, desenvolvendo e criando, também, soluções originais adequadas aos desafios que se lhe deparavam nas vastas regiões do seu império. Ultrapassou de forma pragmática as mudanças de regime e as crises de governo.
Tito Flávio Vespasiano (9-79) sentiu de perto a falência das instituições republicanas; vivenciou a Pax Romana do Principado de César Augusto (27 a. C. - 14 d. C.), fundador do regime imperial; acompanhou a degenerescência do novo poder até ao suicídio de Nero (68) e pôs termo à crise político-militar que se lhe seguiu (68-69). Proclamado imperador, aos 60 anos de idade, foi um dos principais obreiros da reorganização e estabilização do estado romano, associando-lhe a concessão do Ius Latii Minus às províncias do Império.
Vespasiano, instituidor da dinastia Flávia (69-96), foi, num momento de crise política do Império, o homem certo na altura certa. Sobre a sua vida e a sua obra, afectas a um dos períodos de maior grandiosidade de Roma, incidirá este breve apontamento.

Da extensão do seu território:
ROMA foi de facto grandiosa em quase tudo, indo, o seu Império, muito para além da Península Itálica e dos territórios imensos e ricos que bordejavam o Mediterrâneo, chegando, no oriente, até aos rios Tigre e Eufrates; para sul, ao interior africano e, na área mais directa da sua actuação, a todo o continente europeu e, também, onde não estiveram as suas tropas, fez-se sentir a sua influencia.

Da persistência das suas realizações:
Os romanos não só chegaram geograficamente longe na sua época, como também viajaram, na história e no tempo, até nós. Ainda hoje, aqui, na Península Ibérica - ao tempo de Roma conhecida como Hispânia - tanto em Portugal, como em Espanha, se escrevem e falam línguas latinas. Continua a utilizar-se, com segurança, parte da rede viária romana e transpõem-se rios através de sólidas pontes, além da admiração que nos suscitam as suas obras de arte e o progresso técnico alcançado na obtenção e transformação das matérias primas e da sua utilização em estruturas de grande porte, como barragens e aquedutos (ALARCÃO, 1983).
Nas infra-estruturas urbanas: que dizer das casas com paredes duplas para circulação de ar quente; dos átrios e pátios providos de tanques para onde confluem as águas dos telhados compluviais; da rede de esgotos e de água potável; da área de banhos e do requinte decorativo – marmóreo, pictural, mosaístico e escultórico – que tudo domina? Enfim, um mundo de inovações e de aspectos, muitos deles surpreendentes pela sua funcionalidade e actualidade.

Do direito romano:
O estado romano tinha leis, aprovadas pelo senado, que definiam a sua política económica, social e administrativa. A legislação romana sofreu desde a monarquia, passando pela republica e, por último, pelo império, transformações importantes no sentido do seu aperfeiçoamento e da contemplação de uma maior justiça social e política.
Se inicialmente as cidades latinas não tinham o mesmo estatuto e privilégio de Roma, não gozando, por exemplo, do direito de cidadania romana, elas foram, aos poucos – mercê da consolidação do poder reivindicativo das diferentes classes sociais e por pressões externas – contempladas com direitos lenitivos diversos que cerceavam quase sempre o acesso a determinados cargos ou competências. O mesmo aconteceu com as províncias e os seus habitantes, e até a colonos vindos de Itália para a península Ibérica, a quem lhes era negado o direito romano. Muitas vezes foram as crises governamentais e a necessidade do apoio dos provinciais no engrossar das hostes militares que aceleraram o reconhecimento do direito latino à maioria das cidades do império (HOMO, 1936: 8-50).

Tito Flávio Vespasiano:
Tito Flávio Vespasiano nasceu perto de Reate, na Sabina, no dia 18 de Novembro do ano 9 e faleceu em Cutilias, na Sabina, no dia 23 de Junho de 79. Era filho de um republicano da Toscânia, reputado e honesto cobrador de impostos ao qual, em reconhecimento, várias localidades da Ásia Menor erigiram monumentos (GRIMBERG 1966: 120). Vespasiano deveu a sua rápida ascensão aos seus talentos militares. Depois de ter servido na Trácia, Grécia, e na Bretanha, tornou-se cônsul (51), governador de África (63), antes de receber, por mandato de Nero, o comando da guerra na Judeia (65). Iniciara o cerco de Jerusalém quando, após o suicídio de Nero e a morte de Galba, estalaram as lutas entre Otão e Vitélio. Para resolver esta crise, as legiões do oriente proclamaram-no imperador, quase contra sua vontade (Julho de 69). Foi rapidamente reconhecido pelos exércitos de Mésia, da Panónia e da Ilíria. Enquanto permanecia no oriente, o seu general Antonio Primo invadiu a Itália, derrotou os exércitos de Vitélio em Bedríaco e Cremona e depois apoderou-se de Roma. Vespasiano regressou a Itália (70), não sem antes entregar a direcção da guerra na Judeia a seu filho Tito (imperador de 79 a 81).
No exterior, a revolta gaulesa de Cláudio Civil foi reprimida (70), seu filho Tito concluiu vitoriosamente a guerra dos Judeus, Agrícola consolidou a conquista da Bretanha e as fronteiras do Reno e do Danúbio consolidaram-se devido à anexação dos Campos Decumates. O oriente passou por uma grande reorganização administrativa, sendo a Judeia reduzida a província e a Comagene anexada à Síria (72); a Capadócia e a Pequena Arménia incorporaram-se na Galácia (Mourre, 1998: 1456).
Vespasiano, imperador romano de 69 a 79, iniciava assim a dinastia dos Flávios (69-96), após o suicídio de Nero (68) e a crise político/militar (68-69) que levou à morte, no espaço de um ano, de três imperadores: Galba, Otão e Vitélio. Aplacados os ânimos das revoltas do oriente e do ocidente, Vespasiano restabeleceu a unidade romana, conviveu inteligentemente com o Senado e motivou-o a opor-se às crescentes exigências do exército (PETIT, 1976: 266). Depurou os elementos nocivos, indesejáveis, do Senado, restaurou a censura e, em 73-74, com seu filho Tito, como prosélito, começou por excluir quem quis, preenchendo os lugares vagos pela cavalaria aristocrata de Itália e, nas províncias, pela aristocracia dos municípios.
Estes novos senadores, desconhecedores dos jogos do poder, eram contudo honrados, trabalhadores e colaboradores fieis, representando o elemento melhor e mais são do império, caminhando a reorganização administrativa a par da reorganização política.
Uma vez que o erário se encontrava em situação de ruptura, dados os gastos de Nero e a guerra civil que se seguiu, Vespasiano opôs-se aos gastos supérfluos. Aumentou as receitas dos impostos procedendo à revisão do número de contribuintes; restituiu ao domínio publico áreas de que se apoderaram indevidamente alguns particulares; criou novos impostos, como o vectigal urinae, que lhe trouxe maior popularidade nas gerações vindouras (Homo, 1936: 47).
Todavia, apesar do grande esforço para poupar nas finanças públicas, iniciou aquela que é muito justamente considerada a maior obra de arquitectura romana de todo o império: O anfiteatro Flávio (72), ou Coliseu, concluído por seu filho Tito em 80 d.C. e inaugurado com cem dias de combates de gladiadores e animais ferozes, entre outros “divertimentos”. Nesta grandiosa mole arquitectónica aplicaram-se e desenvolveram-se pela primeira vez abobadas especiais de sustentação das bancadas e dos andares superiores, alem de uma colunata de estilo compósito[1] virada para o interior do anfiteatro (ZSCHIETZSCHMANN, 1970: 131-135).
A construção de edifícios grandiosos, como o do Coliseu que podia conter cerca de 50000 espectadores sentados, parece contraditória relativamente à política económica de austeridade seguida pelo imperador, porém é bastante aceitável uma razão de ordem pratica: Roma ardera, parte do seu património estava devastado; a crise provocada pelas guerras civis deixara milhares de pessoas arruinadas; havia que tomar medidas urgentes, reconstruir o que se pudesse e deixar obra que a todos servisse, obras públicas. Foi essa a postura de Vespasiano. Em vez de as alimentar, distribuindo-lhes gratuitamente trigo sem que nada fizessem em troca, preferiu dar-lhes um trabalho útil (GRIMBERG, 1966: 119-120 ).

Os Conventus:
É atribuída aos Flávios, nomeadamente a Vespasiano, a criação dos conventus, um novo tipo de circunscrições administrativas, de cariz judicial.
No caso da Lusitânia, por exemplo, foram criados três conventus: o emeritensis, o pacensis e o scalabitanus. Na província Tarraconense criaram-se sete conventus, sediados em Tarraco, Carthago nova, Caesaraugusta, Clunia, Asturica Augusta, Lucus augusti e Bracara Augusta.
Um governador de província ou um seu delegado, julgava as causas mais problemáticas, as que ultrapassavam a justiça dos magistrados das civitates. Uma assembleia, constituída por representantes das várias cidades do conventus, era o órgão consultivo do governador de província.
Os conventus existentes em território português eram três: pacensis, com sede em Pax Ivlia (Beja); scalabitanus (Santarém) e Bracara Augusta (Braga) (ALARCÃO 1988: 58).

A concessão do Ius Latii Minus às províncias:
Durante o império romano as províncias organizavam-se de modo diverso e as suas cidades possuíam, por vezes, estatutos políticos/administrativos bem diferenciados uns dos outros e da própria cidade de Roma.
Na península Hispânica, a província da Lusitânia, por exemplo, era uma província pretoriana, governada por um pretor, acompanhado por um legado e um questor, que comandava apenas uma legião; enquanto a Tarraconense, era uma das províncias consulares, governada por um cônsul, assistido por três legados, e por um questor, comandante de varias legiões; já as províncias procuratórias, consideradas domínios do imperador eram administradas por intendentes ou praesides, com poderes civis e militares.
Nestas províncias, cujo solo, ager publicus, era considerado propriedade do povo romano e sujeito a um imposto predial pago em espécie, vectigal, ou em dinheiro, stipendium, existiam cidades que gozavam do direito latino, em que os seus habitantes, os seus naturais, eram equiparados a cidadãos de Roma. Porém, a grande maioria das cidades e dos habitantes provinciais ou tinham direitos muito reduzidos ou não tinham quaisquer direitos.
Quando se fala de Latini não se refere apenas os habitantes do Lacio, de Roma e da sua área envolvente, mas também uma categoria jurídica de cidadãos. Nem todos em Itália tinham os mesmos direitos, pois havia, até, quem não tivesse nenhuns, quanto mais nas províncias quer em tempos da republica ou do império. A lei não era igual para todos, estratégia que estava de acordo com o espírito pragmático romano quanto à conservação do poder e da melhor forma de administrar tão vasto território. Mantendo-se a divisão, a diferença de tratamento entre áreas próximas, problemáticas, governa-se muito melhor.
Na realidade, durante a republica romana, no interior de Itália, a luta de classes entre plebeus e patrícios, levou aqueles à obtenção de direitos antes considerados impossíveis, como os ius connubii, ius commercii e o ius suffragii, embora o acesso às legiões e às magistraturas lhes continuassem vedados.
Com os latinos coloniais, os cidadãos das colónias latinas, fundadas a partir de 338 a. C., não tinham os mesmos direitos dos Latini Veteres, os antigos latinos. Não podiam, por exemplo, cunhar moeda, não podiam contrair casamento com romanos e não obtinham automaticamente a cidadania romana total indo residir para Roma.
É precisamente este direito latino, ius latii, que mais tarde será aplicado a certas cidades das províncias. A partir de 49 a. C., o direito latino cobre toda a Itália, sendo considerado um favor nas províncias (Larousse, 1999).
A mudança:
Pelos anos 73 ou 74 o imperador Vespasiano concede à península Ibérica o ius Latii minus, testemunhando-se em 75 os primeiros pedidos de cidadania romana com direito a ela. Durante o governo do último Flávio, Domiciano, estavam ainda em marcha as transformações urbanas, nomeadamente no noroeste peninsular onde menos abundavam as cidades organizadas.
A concessão da latinidade não acabava, nem sequer teoricamente, com a vida político-administrativa, jurídica e social indígena. As cidades privilegiadas, ainda que organizadas ao estilo romano, eram de tipo peregrino. Seria precipitado pensar que a medida de Vespasiano faria desaparecer o espírito indígena primitivo quando se conhece o quanto ele ainda lhe está arreigado (Pidal, 1935: 298-305).

Concluindo:
No processo de romanização da Península Ibérica nem todas as cidades foram, desde logo, contempladas com o Ius Latii Minus, pelo que a sua concessão por Vespasiano, em 73 ou 74, vem valorizar sobremaneira o seu contributo para a hegemonia política, social, económica e cultural entre os povos que integravam o império romano. Recordam-no, por exemplo, Aquae Flaviae (Chaves), Municipium Flavium Mirobriga (próx. Santiago de Cacém) e Flavia Conimbriga (próx. Coimbra) (ALARCÃO 1983: 55).
Esse benefício, generalizado a partir de 212 pelo édito de Caracala, trouxe, simultaneamente, maior responsabilidade aos futuros municípios provinciais e maior autonomia das províncias em relação a Roma. Resguardando os seus próprios interesses, segundo as potencialidades agrícolas, mineiras e industriais, que possuíam, desenvolveram cada vez mais a sua região sob múltiplos aspectos, nomeadamente urbanísticos (ACCIOLI;TAUNAY, 1974: 99). Assistiu-se, pois, a todo um processo de renovação das cidades, patente, ainda hoje: na permanência do seu traçado clássico, de tipologia ortogonal; no resto de edificações militares, publicas, religiosas e privadas; no espólio arqueológico, existente nos museus ou integrando museus de sítio, constituído por grandes elementos arquitectónicos, como cornijas, fustes, capiteis compósitos e coríntios, datáveis maioritariamente da dinastia Flavia.
Mérida e Beja ostentam bem a magnificência das obras realizadas nessa época.

Publicado por Leonel Borrela no jornal Diário do Alentejo em 15 de Junho de 2007.

Alguma bibliografia:
ACCIOLI, Roberto; TAUNAY, Alfredo (1974) – Historia Geral da Civilização. Rio de Janeiro: Bloch Editores S. A
ALARCÃO, Jorge (1983) - Portugal Romano. Lisboa: Verbo
ALARCÃO, Jorge de (1988) – O domínio romano em Portugal. Mem Martins: Europa-América
BORRELA, Leonel – “ICONOGRAFIA PACENSE”. In Diário do Alentejo, 2006 (16, 23 e 30 de Junho; 7 de Julho;27 de Outubro e 1de Dezembro).
CORNELL, Tim; MATTHEWS, John (1991) – Roma, herança de um império. Lisboa: Circulo de Leitores.
Dicionário Temático Larousse (1999) - Civilização Romana. Lisboa: Circ. Leitores
Grande História de Arte (2006) – Arte Romana. Edição do jornal Público. V.12, p.167
GRIMBERG, Carl (1966) – HISTÓRIA Universal. Vol. V, Lisboa: Europa-América
HOMO, León (1936) – El imperio romano. Madrid: Espasa-Calpe, S. A.
PETIT, Paul (1976) – O Mundo Antigo. Lisboa: Edições Ática, 1976.
PIDAL, Ramon Menéndez (1935) – Historia de España. Tomo II. Madrid: Espasa-Calpe, S. A.
MATTOSO, José (Dir.) (1992) – História de Portugal. Vol.1, Lisboa: Circulo de Leitores
MCDONALD, A. H. (1971) – Roma republicana. Lisboa: Verbo,
MOURRE (1998) – Dicionário de Historia Universal. Vol.III. Lisboa: Circulo dos Leitores
SARAIVA, José Hermano (Dir.) (1983) – História de Portugal.Vol.1,Lisboa: Alfa
ZSCHIETZSCHMANN, Willy (1970) – Etruscos e Roma. Lisboa: Verbo

[1] O estilo compósito romano que, para Portugal, tem a cidade de Beja (sede da antiga colónia Pax Ivlia) como capital, é composto pela junção, no mesmo capitel, dos ornamentos clássicos jónicos e coríntios, definidores da fase barroca da arte imperial, razão por que apresentam um maior contraste no claro/escuro e maior projecção plástica. O grande capitel (ver também foto da crónica anterior), encontrado no saudoso café-concerto, "Os Infantes", em 1981, constituído por dois grandes blocos marmóreos conjugava, para o mesmo edifício a que pertencia, os dois estilos mais sumptuosos – visto numa determinada perspectiva é, somente, coríntio (lado correspondente ao de uma pilastra adossada de menor secção), enquanto, das outras, a adjacente e a oposta (nos lados, respectivamente, da pilastra maior e da meia coluna) é compósito. Já várias vezes chamamos a atenção, no Diário do Alentejo, para o superior interesse histórico e artístico destes capiteis, pois são vários, provavelmente pertencentes ao mesmo edifício (sobre o qual também tecemos algumas considerações) datável, obviamente, do período Flávio ou, o mais tardar, até aos começos do século II, ainda sob a sua influencia...

domingo, 16 de agosto de 2009

BEJA CIDADE MONUMENTAL


BEJA CIDADE MONUMENTAL *


Pax-Júlia, assim se chamava no final do século I A.C. a sede de um dos três conventos jurídicos, o mais meridional, em que se dividiu a Lusitânia. A sua fama, bons terrenos de cultivo e criação de gado, pedreiras e minério, boas vias de comunicação, uma extensa região razoavelmente administrada, teriam sido, dada a cupidez humana, a sua perdição.
Após as invasões bárbaras, tornou-se sede de bispado visigodo - com o nome de Paca - mantendo boa parte do poder e magnificência anteriores até que, no início do século VIII, caiu sob o domínio muçulmano. Nesta longa "paragem" o islão encantou Beja, formosa e branca, conservou o seu grande perímetro amuralhado e foi mãe de gente letrada como Almut' Amid, o paladino dos poetas andaluzes e rei de Sevilha.
Tentativas sucessivas de conquista e reconquista pelos reis cristãos, reduziram-na gradualmente a escombros, ruínas de pedras vetustas e histórias lendárias - Gonçalo Mendes da Maia, "O Lidador", neto do rei de Leão e fronteiro-mor de D. Afonso Henriques, apesar da sua já provecta idade, 95 anos, alcançaria a vitória sobre o temivel rei mouro Almoliamar nas cercanias de Beja, reconstituição iconográfica que o grande artista Jorge Colaço nos legou num dos seus mais belos painéis de azulejaria, concebido para a praça de armas do castelo, onde ainda esteve exposto, sendo mais tarde transferido para o jardim público Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Definitivamente na posse portuguesa a partir de 1234, é-lhe concedido foral por D. Afonso III, reconhecendo-a como uma das principais vilas do reino… Só com D. Manuel I, em 1521, alcança de novo o estatuto de cidade, vindo o bispado a ser restaurado em 1770, mais de mil anos depois da sua extinção.
A Torre de Menagem é o ex-libris da cidade, a sua altura (40m) e a sua beleza marmórea fizeram dela o melhor monumento militar do género em Portugal. É obra trecentista, de forte influência muçulmana - não há duas faces iguais, “imperfeição”, diferença e desígnio que só a humildade do construtor mouro pratica. Contudo, a torre de menagem, dita de D. Dinis, mas provavelmente concluída em grande parte no reinado de D. Fernando, um dos principais obreiros da reconstrução da fortificação medieval, é só uma pequena parcela do valioso património pacense. A sua fortificação de fundação romana ainda conserva, com algumas portas coevas e medievais, cerca de 1.700 m de perímetro com 37 das 48 torres que teimosamente possuía na segunda metade do século XIX, período conturbado pela instabilidade política que assolava o país, bastante lesivo para a cidade, no qual se perderam mais de metade dos seus monumentos. Nas escavações arqueológicas realizadas,entre 1983 e 2000, na rua do Sembrano, pôs-se a descoberto o troço de uma muralha, de circuito menor do que o da romana, datável da idade do ferro - estrutura bélica que vem provar a necessidade ancestral de defesa e controlo não só de uma colina, mas também de uma região, particularidade que não foi ignorada pela práxis romana.
Próximo da alcáçova, com suas janelas mudejares, e fora das portas romanas de Évora, a basílica de Sto. Amaro possui um interior de raiz paleocristã, visigótica, moçárabe ou islâmica. Não se sabe ao certo quando foi fundada, vindo o mistério da volumetria da abside e dos estilos e épocas diferenciados a que pertencem os diversos elementos arquitectónicos das colunas – bases, fustes, capiteis e ábacos, associados a várias leituras de funcionalidade da capela-mor, rivalizam entre si na datação do monumento, incerteza que uma prospecção arqueológica pode muito bem resolver. Alberga neste momento, como Núcleo do Museu Regional de Beja, a colecção de arte visigótica pacense, a mais importante do país, onde figura a célebre lápide funerária epigrafada em latim, na qual Calandrónio lamenta profundamente a morte da sua sobrinha (noiva?) Maura.
Um pouco mais longe a pequena ermida de Sto. André (bem enquadrada e valorizada pelo Programa Polis), mostra na sua simplicidade primeira os botaréus cilíndricos de coruchéus cónicos e alguns pequenos merlões chanfrados, característicos do estilo gótico manuelino-mudejar ou alentejano, tal como o podemos observar, intramuros, na galilé da pitoresca igreja paroquial de Sta. Maria da Feira, construída pelo século XIII no mesmo local onde anteriormente foram, cada uma a seu tempo, a sé visigótica e a mesquita. Contemporânea da crise-revolução de 1383/85 e a ela ligada, pelos acontecimentos narrados por Fernão Lopes, é a antiga Casa da Câmara que lhe fica defronte, ostentando quase à esquina, a torrinha branca, cilíndrica, já referenciada desde o início do século XVI, recordando a almenara da qual o muezin chamava os fiéis à oração.
E como descrever aquilo que só o ver nos pode oferecer: são os portais de tipo românico, ogivais, manuelinos e renascença; as janelas geminadas mudejares, góticas, manuelinas; as simples portas de postigo, janelas pequenas e chaminés de ressalto das judiaria e mouraria; recantos insuspeitos de arcos e vãos ogivais acessíveis sob passadiços, túneis sui generis sobre as ruas e becos; a leitura nítida, impressionante, que de diferentes pontos da cidade se pode fazer e já se fazia naturalmente, desde as primeiras comunidades humanas que por aqui, nesta colina, passaram e habitaram, dos campos em redor e de um heterogéneo horizonte a perder-se por centenas de quilómetros em redor…
A Praça da República reflecte, de outro modo, a vida do fórum romano e do capitólio - lá estão as sedes da Associação de Municípios, Diário do Alentejo, Região de Turismo Planície Dourada, Município, finanças, lojas diversas, cafés, restaurantes, academia de música, o centro de emprego, a antiga farmácia, uma pensão desactivada, seguros, escritórios de advocacia, antigas sedes de partidos políticos, e um dos mais belos edifícios civis da renascença em Portugal, a loggia dos açougues ou mercado público, desde o séc. XVI adaptada para igreja, obra mandada construir por D. Luís, 5° duque de Beja, filho de D. Manuel I.
São muitas as particularidades da história de Beja, dos seus monumentos e das suas colecções resguardadas e expostas no Museu Rainha D. Leonor (ou Regional), instalado no convento quatrocentista de N. Sra. da Conceição, a comemorar durante este ano de 2009 o 550º aniversário da sua fundação pelos pais da rainha D. Leonor e do rei D. Manuel I, os infantes D. Fernando e D. Brites, primeiros Duques da cidade. Não só o convento é riquíssimo pela sua arquitectura desde o período gótico flamejante, protomanuelino, até aos alvores do século XVI, como se destaca pela decoração barroca da igreja, em talha dourada, azulejaria e mármores embutidos, além dum conjunto raro de revestimento azulejar que, pela sua quantidade e estado de conservação, invadindo as galerias do claustro e da sala do capítulo, esta com painéis sevilhanos do início do século XVI, só tem paralelo em Sintra. A pinacoteca do Museu apresenta boa pintura flamenga, portuguesa e espanhola a óleo sobre madeira, cobre e tela, dos séculos XV a XVIII. Possui todo o género de espólio arqueológico, destacando-se a colecção romana da cidade, cujos elementos arquitectónicos, quaisquer que sejam os estilos, são de facto dos maiores do país e a já mencionada colecção do núcleo visigótico de Sto. Amaro. No 1º andar, a colecção arqueológica Fernando Nunes Ribeiro, destaca cerca de 400 espécimes dos onze mil que este arqueólogo ofereceu à sua cidade. É uma exposição didáctica, abarcando todos os períodos desde a pré-história recente, com especial incidência nos períodos do bronze, ferro e romano. Ao fundo desta galeria, a janela gradeada de Mértola, ou de Soror Mariana Alcoforado, traz à memória as "Lettres Portugaises", as cinco cartas de amor, publicadas em Paris, em 1669, por Claude Barbin, consideradas no seu todo pelos estudiosos como uma obra prima da literatura mundial. Mariana, sua autora controversa, tê-las-ia escrito a um nobre cavaleiro francês, Noel Bouton, conde de Chamilly, que nos auxiliou durante a Guerra da Restauração.
Não há, infelizmente, e se houvesse talvez fosse maçador, espaço para falar mais um pouco dos outros monumentos e das pessoas, que são o mais importante de tudo. Com tempo será necessário visitar as igrejas barrocas (decoração interior) dos Prazeres (esta, que já foi alvo de restauro e musealização, mostra um dos melhores núcleos barrocos do país, sendo surpreendente a unidade programática da sua decoração em talha, pintura de cavalete e mural, associada à azulejaria) e do Pé da Cruz, as manei- ristas de Santiago (actual Sé) e do Salvador (esta, uma igreja singular quanto à arquitectura), a incontornável capela gótica dos túmulos do convento de S. Francisco (actual pousada) e a abóbada sexpartida da capelinha de Sto. Estevão (actual do Sagrado Coração de Jesus no paço episcopal, adjacente à igreja dos Prazeres), enquanto no "Hospital Velho", o Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade, incorrectamente conhecido como Hospital da Misericórdia, fundado em 1490 pelo 4º duque de Beja, D. Manuel, futuro rei de Portugal, retrocedemos cerca de 500 anos no interior melhor conservado de um edifício medieval de assistência hospitalar.
Beja é uma cidade com vida, convidativa, de bulício muito peculiar, a movimentar-se cada vez mais nos caminhos da cultura e do desporto, procurando nas escolas básicas, secundárias e universitárias, nos centros de formação profissional, na biblioteca, nos arquivos e nos museus, nos certames regionais, nacionais e internacionais (estes menos,embora mereça destaque as mostras de Banda Desenhada, com expositores estrangeiros e nacionais de nomeada)), o conhecimento crítico, despojado, inconformado e exigente, da sua singular posição no mundo.
Muito recentemente, já no início do século XXI, o Programa Polis invadiu a cidade, não entrou, nem era a sua política, cremos, no domínio do privado, mas alterou substancialmente o aspecto tradicional de alguns largos e artérias. Se uns, nos meados do século XX, tentaram devolver à cidade uma certa dignidade histórica a que tinha direito, reconstruindo, como um exemplo de entre muitos outros que podemos apontar, o seu pelourinho (com base que o elevasse e valorizasse) no centro da Republica, coberta por calçada à portuguesa, vieram outros, que até a defendiam, como inalterável, no Plano de Salvaguarda do Centro Histórico da Cidade de Beja (1981), desfazer tudo, apear o pelourinho, tornando-o insignificante, e colocar um “campo de urnas”, lajes rasas - no mesmo lugar onde antes, no mosaico da calçada, se comemoravam os símbolos municipais através de uma arte bem portuguesa - só lhes faltam os epitáfios: aqui jaz o forum (a ser, neste momento, parcialmente escavado – na área poente - e com resultados bastante positivos, pois já se identificaram, além de estruturas mais antigas, dois templos romanos, sendo um deles, datável do século I, um dos maiores da península), o terreiro dos banhos, a praça nova e também a da Republica, etc. . Se o resultado na Ermida de Santo André foi positivo, o mesmo não se pode dizer do largo de S. João, junto ao Cine-Teatro Pax Julia. Nem é preciso discutir a arte escultórica, por subjectiva, mas vê-se bem que se perdeu a noção da funcionalidade, da escala das coisas e das cores. O Largo de São João é um campo de “minas”, um projecto absurdo de quem não entendeu uma das finalidades essenciais do Polis: a eliminação das barreiras arquitectónicas. O largo parece um labirinto… e a charca do jardim do “Bacalhau”, de cujo largo se desce, sem protecção alguma, ao lado de um denteado de degraus bem afiados em prol da mobilidade e segurança publicas? Esqueçamos tudo isto (e os episódios “liticamente bélicos” dos últimos dias) e recordemos a outra cidade, aquela que nos cativa para a preservarmos que mais não seja na memória, pois Beja ainda tem quase tudo aquilo que se disse, tem tudo aquilo que é belo, com o cimo do castelo, do qual se avista a planície…
É bom espairecer.
Leonel Borrela

* O texto original, agora ligeiramente modificado, intitulado “Beja cidade de encruzilhada” veio publicado no Nº3, de Janeiro/Abril de 1999, da Revista Cultural Alma Alentejana, e no livro do autor sobre “Cartas de Soror Mariana Alcoforado – antecedidas Das Lettres Portugaises e Mariana Alcoforado”. Castro Verde: 100LUZ, 2007.