quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A funcionalidade medieval da torre de menagem de Beja

Um acesso plausível à Torre de Menagem do castelo de Beja

Em Beja, já na adolescência, pensávamos na organização de um livro ilustrado, baseado nos pormenores que paulatinamente íamos descobrindo na cidade. O primeiro contacto respeitaria a arquitectura e a sua múltipla funcionalidade no decorrer dos diferentes períodos históricos; o segundo, a evolução da sociedade pacense. Julgámos que tal concepção era um esboço de realização rápida, mas não foi. O futuro próximo que almejávamos revelou-se, afinal, um constante adiamento. Assim, durante todos estes anos, como artista plástico, a maioria das exposições de arte que realizámos, foram e ainda são condicionadas, por vontade própria, ao estudo e divulgação do património cultural de Beja e, consequentemente, à formação de um espólio documental misto que, ditosamente, já está mais perto de vir a ser utilizado como uma base de dados informatizada. A preocupação da adolescência converteu-se numa responsabilidade pessoal de defesa intransigente (não contumaz… porque se fosse!) do património cultural de Beja, para a qual, de facto, nunca lográmos o devido apoio oficial[1]. Abrir as portas a uma qualquer exposição é tarefa fácil, o mais difícil é patrociná-la e, em Beja, patrocina-se com frequência, em detrimento dos valores da terra, a idiossincrasia, não diremos de cada um (pelo respeito que nos merecem certas idiossincrasias), mas a de quem decide, em particular.
Passaram quase quarenta anos e aqui estamos nós a braços com uma redacção que constantemente rejeitamos, talvez por já estar cansada de tantas revisões provisórias. Até parece que nos falta firmeza, embora sintamos profundamente o traquejo para avançar. Enfim, apartemo-nos das quase lamúrias e de algumas razões, e passemos ao que melhor caracteriza a Iconografia Pacense: a divulgação de aspectos insuspeitos do nosso património cultural.
Quando, em 1995, a Junta de Freguesia de Portel, patrocinou a publicação de um livrinho ilustrado de nossa autoria, intitulado “Subsídios para a história do castelo de Portel”, há muito que havíamos comparado o sistema de protecção do acesso à sua torre de menagem ao da torre de menagem de Beja. Com efeito, no interior da praça de armas do castelo de Portel, tinha havido até meados do século passado, conforme podemos observar na fotografia do arquivo da antiga Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), datada de 1938, uma torre cilíndrica, de estilo mudéjar, protectora de uma escadaria de caracol que permitia o acesso privado, do interior da alcaiadaria, à torre de menagem. Essa torre de tijolo, fechada superiormente por um coruchéu cónico, era rematada por merlões chanfrados, tais como os da ermida de Santo André e da galilé da Igreja de Santa Maria da Feira, em Beja. Teria sido construída provavelmente no final do século XV ou no início do seguinte, no mesmo local (ou próximo dele) onde antes uma escadaria móvel condicionava o referido acesso.
A comparação, pela semelhança que tentamos estabelecer, entre os acessos às duas torres de menagem, é viável se atendermos às características arquitectónicas da base do acesso de Portel, parcialmente destruído. Também, no início do actual acesso à torre de Beja (ver fotografias), anteriormente situado no interior de edificações já destruídas[2], observamos no recanto à esquerda da porta ogival (B), os primeiros degraus de uma outra escadaria que inflecte para a esquerda, semelhante à que em Portel condicionava o acesso à torre. Aliás, à semelhança do que aconteceu em Portel e noutros castelos portugueses, o sistema defensivo da entrada da Torre de Menagem de Beja praticamente desapareceu, apesar de ainda restarem vestígios dos cinco cachorros (1, 2, 3, 4 e 5) da madre de alpendre que protegia a sua entrada. O actual acesso pleno, de um e de outro lado, pelo adarve circundante da muralha da alcáçova, é uma fantasia, funcional para turista, mas proibitiva para os tempos medievais, e resulta obviamente de um erro, aquando da reconstituição, na compreensão do seu sistema defensivo. O acesso sinalizado em A poderia comunicar com o adarve, para a direita, mas nunca com a entrada da torre – no local constata-se a dificuldade que houve em disfarçar as incongruências do novo acesso.
A Torre de Menagem de Beja não era excepção quanto à restrição de acesso. Apesar do seu aspecto estético, da maravilha de engenharia e arquitectura gótico-mudéjar que apresenta, não estava destinada, como hoje, em princípio, para fins culturais, pois possuía uma função militar de batedora da região circundante e de último reduto defensivo. Salientamos que para o estudo do acesso restrito à torre contam essencialmente os vestígios existentes, a razão e a sedução. Na tentativa de reconstituição que apresentamos, a protecção da escadaria até poderia ter outro formato exterior (prismático, por exemplo), e não se elevam as paredes para que se compreenda melhor o seu posicionamento primitivo. Julgamos, portanto, que a sua realidade histórica é uma hipótese a considerar em futuros estudos do castelo de Beja.
[1] A tal ponto é verdade o que afirmamos que basta conhecer a indiferença com que foram recebidas, em Beja, duas das principais exposições documentais que realizámos. Uma, no final de 1995, no Museu Regional de Beja, onde trabalhamos desde 1977, sobre “Iconografia Pacense”; a outra, sobre “Beja Monumental”, no encerramento ao público, para obras de reabilitação, em Agosto de 1999, no e do Cine-Teatro Pax Júlia. Como excepção, no RI3, realizámos, em 1998, com o devido apoio oficial, do regimento, uma das nossas melhores mostras documentais (plantas, manuscritos e obras impressas, fotos e pintura) sobre “Beja seiscentista e os Fortins do rio Guadiana”; também a EDIA, em 2001, patrocinou com a feitura de um catálogo, a cedência do espaço e o devido acompanhamento, uma outra exposição de aguarelas sobre o rio Guadiana, além de citar, nas suas publicações sobre Alqueva, algumas das nossas crónicas publicadas nesta secção sobre o rio Guadiana.
[2] Há, até, uma observação de Abel Viana, a p.392, do 2º volume da revista Arquivo de Beja, de 1945, relativa ao “apagamento”, pela DGEMN, das estruturas da nova alcáçova que ficaria adjacente à torre de menagem, enquanto a velha alcáçova, já desactivada, funcionaria possivelmente na área da actual entrada principal do castelo. De facto, D. Dinis, faz a doação de duas torres (a Guedelha, filho do rabi maior) que estão sobre a porta da sua alcáçova velha contra a vila, em 1306.
Cf. BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Um acesso plausível à Torre de Menagem do Castelo de Beja" in Diário do Alentejo de [data a confirmar] 2009