domingo, 16 de agosto de 2009

BEJA CIDADE MONUMENTAL


BEJA CIDADE MONUMENTAL *


Pax-Júlia, assim se chamava no final do século I A.C. a sede de um dos três conventos jurídicos, o mais meridional, em que se dividiu a Lusitânia. A sua fama, bons terrenos de cultivo e criação de gado, pedreiras e minério, boas vias de comunicação, uma extensa região razoavelmente administrada, teriam sido, dada a cupidez humana, a sua perdição.
Após as invasões bárbaras, tornou-se sede de bispado visigodo - com o nome de Paca - mantendo boa parte do poder e magnificência anteriores até que, no início do século VIII, caiu sob o domínio muçulmano. Nesta longa "paragem" o islão encantou Beja, formosa e branca, conservou o seu grande perímetro amuralhado e foi mãe de gente letrada como Almut' Amid, o paladino dos poetas andaluzes e rei de Sevilha.
Tentativas sucessivas de conquista e reconquista pelos reis cristãos, reduziram-na gradualmente a escombros, ruínas de pedras vetustas e histórias lendárias - Gonçalo Mendes da Maia, "O Lidador", neto do rei de Leão e fronteiro-mor de D. Afonso Henriques, apesar da sua já provecta idade, 95 anos, alcançaria a vitória sobre o temivel rei mouro Almoliamar nas cercanias de Beja, reconstituição iconográfica que o grande artista Jorge Colaço nos legou num dos seus mais belos painéis de azulejaria, concebido para a praça de armas do castelo, onde ainda esteve exposto, sendo mais tarde transferido para o jardim público Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Definitivamente na posse portuguesa a partir de 1234, é-lhe concedido foral por D. Afonso III, reconhecendo-a como uma das principais vilas do reino… Só com D. Manuel I, em 1521, alcança de novo o estatuto de cidade, vindo o bispado a ser restaurado em 1770, mais de mil anos depois da sua extinção.
A Torre de Menagem é o ex-libris da cidade, a sua altura (40m) e a sua beleza marmórea fizeram dela o melhor monumento militar do género em Portugal. É obra trecentista, de forte influência muçulmana - não há duas faces iguais, “imperfeição”, diferença e desígnio que só a humildade do construtor mouro pratica. Contudo, a torre de menagem, dita de D. Dinis, mas provavelmente concluída em grande parte no reinado de D. Fernando, um dos principais obreiros da reconstrução da fortificação medieval, é só uma pequena parcela do valioso património pacense. A sua fortificação de fundação romana ainda conserva, com algumas portas coevas e medievais, cerca de 1.700 m de perímetro com 37 das 48 torres que teimosamente possuía na segunda metade do século XIX, período conturbado pela instabilidade política que assolava o país, bastante lesivo para a cidade, no qual se perderam mais de metade dos seus monumentos. Nas escavações arqueológicas realizadas,entre 1983 e 2000, na rua do Sembrano, pôs-se a descoberto o troço de uma muralha, de circuito menor do que o da romana, datável da idade do ferro - estrutura bélica que vem provar a necessidade ancestral de defesa e controlo não só de uma colina, mas também de uma região, particularidade que não foi ignorada pela práxis romana.
Próximo da alcáçova, com suas janelas mudejares, e fora das portas romanas de Évora, a basílica de Sto. Amaro possui um interior de raiz paleocristã, visigótica, moçárabe ou islâmica. Não se sabe ao certo quando foi fundada, vindo o mistério da volumetria da abside e dos estilos e épocas diferenciados a que pertencem os diversos elementos arquitectónicos das colunas – bases, fustes, capiteis e ábacos, associados a várias leituras de funcionalidade da capela-mor, rivalizam entre si na datação do monumento, incerteza que uma prospecção arqueológica pode muito bem resolver. Alberga neste momento, como Núcleo do Museu Regional de Beja, a colecção de arte visigótica pacense, a mais importante do país, onde figura a célebre lápide funerária epigrafada em latim, na qual Calandrónio lamenta profundamente a morte da sua sobrinha (noiva?) Maura.
Um pouco mais longe a pequena ermida de Sto. André (bem enquadrada e valorizada pelo Programa Polis), mostra na sua simplicidade primeira os botaréus cilíndricos de coruchéus cónicos e alguns pequenos merlões chanfrados, característicos do estilo gótico manuelino-mudejar ou alentejano, tal como o podemos observar, intramuros, na galilé da pitoresca igreja paroquial de Sta. Maria da Feira, construída pelo século XIII no mesmo local onde anteriormente foram, cada uma a seu tempo, a sé visigótica e a mesquita. Contemporânea da crise-revolução de 1383/85 e a ela ligada, pelos acontecimentos narrados por Fernão Lopes, é a antiga Casa da Câmara que lhe fica defronte, ostentando quase à esquina, a torrinha branca, cilíndrica, já referenciada desde o início do século XVI, recordando a almenara da qual o muezin chamava os fiéis à oração.
E como descrever aquilo que só o ver nos pode oferecer: são os portais de tipo românico, ogivais, manuelinos e renascença; as janelas geminadas mudejares, góticas, manuelinas; as simples portas de postigo, janelas pequenas e chaminés de ressalto das judiaria e mouraria; recantos insuspeitos de arcos e vãos ogivais acessíveis sob passadiços, túneis sui generis sobre as ruas e becos; a leitura nítida, impressionante, que de diferentes pontos da cidade se pode fazer e já se fazia naturalmente, desde as primeiras comunidades humanas que por aqui, nesta colina, passaram e habitaram, dos campos em redor e de um heterogéneo horizonte a perder-se por centenas de quilómetros em redor…
A Praça da República reflecte, de outro modo, a vida do fórum romano e do capitólio - lá estão as sedes da Associação de Municípios, Diário do Alentejo, Região de Turismo Planície Dourada, Município, finanças, lojas diversas, cafés, restaurantes, academia de música, o centro de emprego, a antiga farmácia, uma pensão desactivada, seguros, escritórios de advocacia, antigas sedes de partidos políticos, e um dos mais belos edifícios civis da renascença em Portugal, a loggia dos açougues ou mercado público, desde o séc. XVI adaptada para igreja, obra mandada construir por D. Luís, 5° duque de Beja, filho de D. Manuel I.
São muitas as particularidades da história de Beja, dos seus monumentos e das suas colecções resguardadas e expostas no Museu Rainha D. Leonor (ou Regional), instalado no convento quatrocentista de N. Sra. da Conceição, a comemorar durante este ano de 2009 o 550º aniversário da sua fundação pelos pais da rainha D. Leonor e do rei D. Manuel I, os infantes D. Fernando e D. Brites, primeiros Duques da cidade. Não só o convento é riquíssimo pela sua arquitectura desde o período gótico flamejante, protomanuelino, até aos alvores do século XVI, como se destaca pela decoração barroca da igreja, em talha dourada, azulejaria e mármores embutidos, além dum conjunto raro de revestimento azulejar que, pela sua quantidade e estado de conservação, invadindo as galerias do claustro e da sala do capítulo, esta com painéis sevilhanos do início do século XVI, só tem paralelo em Sintra. A pinacoteca do Museu apresenta boa pintura flamenga, portuguesa e espanhola a óleo sobre madeira, cobre e tela, dos séculos XV a XVIII. Possui todo o género de espólio arqueológico, destacando-se a colecção romana da cidade, cujos elementos arquitectónicos, quaisquer que sejam os estilos, são de facto dos maiores do país e a já mencionada colecção do núcleo visigótico de Sto. Amaro. No 1º andar, a colecção arqueológica Fernando Nunes Ribeiro, destaca cerca de 400 espécimes dos onze mil que este arqueólogo ofereceu à sua cidade. É uma exposição didáctica, abarcando todos os períodos desde a pré-história recente, com especial incidência nos períodos do bronze, ferro e romano. Ao fundo desta galeria, a janela gradeada de Mértola, ou de Soror Mariana Alcoforado, traz à memória as "Lettres Portugaises", as cinco cartas de amor, publicadas em Paris, em 1669, por Claude Barbin, consideradas no seu todo pelos estudiosos como uma obra prima da literatura mundial. Mariana, sua autora controversa, tê-las-ia escrito a um nobre cavaleiro francês, Noel Bouton, conde de Chamilly, que nos auxiliou durante a Guerra da Restauração.
Não há, infelizmente, e se houvesse talvez fosse maçador, espaço para falar mais um pouco dos outros monumentos e das pessoas, que são o mais importante de tudo. Com tempo será necessário visitar as igrejas barrocas (decoração interior) dos Prazeres (esta, que já foi alvo de restauro e musealização, mostra um dos melhores núcleos barrocos do país, sendo surpreendente a unidade programática da sua decoração em talha, pintura de cavalete e mural, associada à azulejaria) e do Pé da Cruz, as manei- ristas de Santiago (actual Sé) e do Salvador (esta, uma igreja singular quanto à arquitectura), a incontornável capela gótica dos túmulos do convento de S. Francisco (actual pousada) e a abóbada sexpartida da capelinha de Sto. Estevão (actual do Sagrado Coração de Jesus no paço episcopal, adjacente à igreja dos Prazeres), enquanto no "Hospital Velho", o Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade, incorrectamente conhecido como Hospital da Misericórdia, fundado em 1490 pelo 4º duque de Beja, D. Manuel, futuro rei de Portugal, retrocedemos cerca de 500 anos no interior melhor conservado de um edifício medieval de assistência hospitalar.
Beja é uma cidade com vida, convidativa, de bulício muito peculiar, a movimentar-se cada vez mais nos caminhos da cultura e do desporto, procurando nas escolas básicas, secundárias e universitárias, nos centros de formação profissional, na biblioteca, nos arquivos e nos museus, nos certames regionais, nacionais e internacionais (estes menos,embora mereça destaque as mostras de Banda Desenhada, com expositores estrangeiros e nacionais de nomeada)), o conhecimento crítico, despojado, inconformado e exigente, da sua singular posição no mundo.
Muito recentemente, já no início do século XXI, o Programa Polis invadiu a cidade, não entrou, nem era a sua política, cremos, no domínio do privado, mas alterou substancialmente o aspecto tradicional de alguns largos e artérias. Se uns, nos meados do século XX, tentaram devolver à cidade uma certa dignidade histórica a que tinha direito, reconstruindo, como um exemplo de entre muitos outros que podemos apontar, o seu pelourinho (com base que o elevasse e valorizasse) no centro da Republica, coberta por calçada à portuguesa, vieram outros, que até a defendiam, como inalterável, no Plano de Salvaguarda do Centro Histórico da Cidade de Beja (1981), desfazer tudo, apear o pelourinho, tornando-o insignificante, e colocar um “campo de urnas”, lajes rasas - no mesmo lugar onde antes, no mosaico da calçada, se comemoravam os símbolos municipais através de uma arte bem portuguesa - só lhes faltam os epitáfios: aqui jaz o forum (a ser, neste momento, parcialmente escavado – na área poente - e com resultados bastante positivos, pois já se identificaram, além de estruturas mais antigas, dois templos romanos, sendo um deles, datável do século I, um dos maiores da península), o terreiro dos banhos, a praça nova e também a da Republica, etc. . Se o resultado na Ermida de Santo André foi positivo, o mesmo não se pode dizer do largo de S. João, junto ao Cine-Teatro Pax Julia. Nem é preciso discutir a arte escultórica, por subjectiva, mas vê-se bem que se perdeu a noção da funcionalidade, da escala das coisas e das cores. O Largo de São João é um campo de “minas”, um projecto absurdo de quem não entendeu uma das finalidades essenciais do Polis: a eliminação das barreiras arquitectónicas. O largo parece um labirinto… e a charca do jardim do “Bacalhau”, de cujo largo se desce, sem protecção alguma, ao lado de um denteado de degraus bem afiados em prol da mobilidade e segurança publicas? Esqueçamos tudo isto (e os episódios “liticamente bélicos” dos últimos dias) e recordemos a outra cidade, aquela que nos cativa para a preservarmos que mais não seja na memória, pois Beja ainda tem quase tudo aquilo que se disse, tem tudo aquilo que é belo, com o cimo do castelo, do qual se avista a planície…
É bom espairecer.
Leonel Borrela

* O texto original, agora ligeiramente modificado, intitulado “Beja cidade de encruzilhada” veio publicado no Nº3, de Janeiro/Abril de 1999, da Revista Cultural Alma Alentejana, e no livro do autor sobre “Cartas de Soror Mariana Alcoforado – antecedidas Das Lettres Portugaises e Mariana Alcoforado”. Castro Verde: 100LUZ, 2007.

4 comentários:

  1. Amigo, gosto da sua escrita!
    Olhe aquele livro de que lhe falei tem de ser adiado... Tenho estado hospitalizado e vou voltar a ser operado esta 3ª feira. Abraço - Antonio Melão

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  2. Caro Melão, obrigado pelo seu comentário. Espero pelas suas melhoras para concretizarmos o roteiro histórico. Abraço LB

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Até que enfim, o municipio já colocou as grades/corrimão de protecção que se exigiam, tal como mencionamos nesta crónica, no Jardim do Bacalhau. Agora só falta acabar de vez com a inestética e perigosa "charca" e colocar um novo espelho de água na zona mais central do "jardim". Os bancos deviam ter sido mais e colocados mais próximos uns dos outros, alguns frente a frente, para descanso de mais pessoas e também para promover o convívio.
    Infelizmente o Largo de S. João continua uma bandalheira quanto ao transito automóvel e um perigosissimo entrave à circulação de pessoas. Esperemos que o municipio ponha brevemente cobro à pior obra do programa Polis.

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