quarta-feira, 20 de julho de 2011

As cabeças de touro da cidade de Beja

Ilustração: planta aproximada de uma das cabeças de touro, a da esquerda, situada na galeria exterior do Museu Regional de Beja, cujo "acervo arquitectónico" romano, entre fuste liso fragmentado, cabeças de touro, capitéis compósitos e cornijas, é quase todo proveniente da área delimitada entre as ruas dos Infantes, do Touro e extremos do Largo da Conceição (entre a ábside da demolida igreja de S. João e a antiga Rua da Torrinha), portanto, provavelmente, do extremo Estesudeste do Forum de Pax Ivlia.
Ver a perspectiva do "friso de ângulo", com as cabeças de touro, na tentativa de reconstituição do post anterior.



No Relatório das Couzas notaveis desta cidade (pelo padre Pedro Pires Nolasco prior de S. João, em 1734), manuscrito da Biblioteca Municipal, constam dados importantíssimos acerca dos túneis que atravessam a cidade; da construção de formigão próxima da igreja do Pé da Cruz, das portas da muralha, etc..

Nas folhas quatro e seguintes podemos ler que «a freguesia de S. João Baptista ocupa a parte ocidental da cidade; tem 620 vizinhos, alguns anos serão menos, passando de seiscentos fogos e duas mil e quinhentas e sessenta e uma almas de sacramento; tem duas confrarias de ordenança a que chamam S. João de fora e S. João de dentro, porque os moradores intramuros têm um capelão e os de fora outro».

A igreja paroquial, situada entre as Ruas do Touro e do Sembrano, é de uma só nave, pavimentada a tijolo, integrando algumas campas de pessoas particulares, enquanto a capela mor, quase toda coberta de campas, tem a sua ousia de pedra feita no ano de 1719. As paredes são de alvenaria e as esquinas de mármore branco, mas muito pequena a respeito de povo e muito tosca. A capela mor é de abóbada pequena e baixa e, pela parte de dentro, tem «arcos de pedra a modo de pernas de aranha» (isto é, tinha nervuras; tinha uma abóbada nervurada e estrelada no intradorso da capela mor), nela está o tabernáculo do Santíssimo Sacramento e no retábulo a imagem de vulto de S. João Baptista titular e principal patrono da igreja; no lado da epístola está a imagem de Santa Maria Madalena, padroeira menor. O arco do cruzeiro é de pedra mármore, todo tosco e antigo - os dois fundamentais (isto é, os pés direitos, as jambas) são duas pequenas e toscas colunas de mármore.

O tecto do corpo da igreja é de madeira, com apainelado largo e frisos, de cerca de 1680; a cobertura é de telha mourisca. Acima do arco da capela mor está colocada uma imagem de Cristo Crucificado de meia grandeza e muito devota; ao lado direito, Nossa Senhora do Pé da Cruz e, ao lado esquerdo, o Santo Evangelista João. Mais acima deste conjunto está um quadro do grande Baptista, representando-o numa floresta, sentado e recostado, junto ao tronco de uma árvore, com um cordeiro do lado esquerdo (um primor de arte, observa o padre Pedro Pires).

A porta principal está ao ocidente e a outra no sul, ao lado da epístola. Tem o corpo da igreja quatro altares mais dois colaterais com seus retábulos dourados ladeando o arco da capela mor. O primeiro da esquerda é o do glorioso S. Braz, bispo e mártir, cuja imagem situada no nicho central está ladeada de S. Luís, bispo, e de Santo António com o Menino; a seguir o altar de S. Vicente Ferrer, ladeado à direita por Santo Agostinho doutor e S. Romao mártir - a imagem de S. Vicente foi colocada na igreja em 1720, à custa do seu grande devoto Agostinho Simões, mercador que foi de roupas inglesas nesta freguesia. Ao lado direito, o altar colateral é o do Sacramento, na sequência do ornato que vem da porta da confraria do S.S. –no meio tem a imagem de Nossa Senhora das Candeias, ladeada pelas imagens de Cristo Nosso Senhor preso à coluna e do Senhor da Cana Verde; o segundo altar quase a meio da nave, em frente ao de S. Vicente Ferrer, é o de Nossa Senhora do O, imagem de glória no meio de uma formosa tribuna entalhada e dourada, com Bula Apostólica de indulgenciar. Entre este altar e o do SS. Sacramento fica o coro donde se reza; e entre este e o altar já nomeado de Nossa e Senhora do O fica o púlpito; e entre o altar do Santíssimo e o altar mor fica a sacristia. Entrando na nave, à esquerda, fica o baptistério, adossando-se-lhe a sacristia da confraria do Santíssimo, com muito suficiente ornato e serviço de prata para os usos das suas funções. A torre sineira, situada à direita da entrada principal, fica saliente à fachada e serve de apoio ao alpendre abobadado, construído em 1719.

Dando para o interior do nartex, embutido na face da torre, está um nicho de pedra fina muito bem lavrada com a imagem de Nossa Senhora da Oliveira, de glória com as mãos postas, de perfeitíssimo feitio com cortinados, mantos e vidraça, porta e lâmpada, tudo com muito custo e muito rico, à custa do devoto dr. padre Xavier Lobo desta cidade e freguesia, no ano de 1728 (julgamos que este nicho é o mesmo, mas sem imagem, que se encontra no pátio do Convento da Conceição, onde também foi reconstruído o presumível portal da demolida igreja paroquial de João).

A folha undécima, fala-nos das «Antigualhas q se achão dispersas nesta freguesia. Nas costas da capela mor da minha igreja, estão duas cabeças de Touro esculpidas em dois grandes mármores, que mostram ser de tempo muito antigo. No frontispício das casas donde mora o padre Manuel Nunez escrivão desta cidade se acha outra semelhante e dentro das mesmas casas se acha sepultado outra figura de um grande boi, e no muro antigo desta cidade e freguesia está outra grande cabeça de Touro […]deviam ser de grande construção, palácio, etc. […] pois que ainda hoje se vê uma cabeça na praça de baixo das janelas da casa da camara desta cidade e outra sobre as portas de Évora». Diz- nos também o padre Pedro Pires Nolasco que só nesta freguesia da cidade se encontram estas coisas, assim tão antigas - «cabeças de boi a que chamam brasão da cidade».

Para a semana que vem tentaremos mostrar, com base: no auto de medição de 1608; na orientação da igreja e nalguns dados fornecidos não só por este manuscrito de 1734, mas também pelo Boletim Municipal de 1919 – 1922, que o edifício, o monumento demolido durante a primeira República, pode ter sido um templo romano reaproveitado1.

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Recordamos a parte segunda deste estudo preliminar sobre a igreja de S. João Baptista, vinda a lume na Iconografia Pacense (cerca de 135 crónicas que escrevemos e ilustrámos, desde 1995 até 2000, para o jornal Diário do Alentejo), porque nem as descobertas fortuitas de espécimes arqueológicos de grande qualidade na cidade permitem, autorizam ou legitimam, uma paragem séria e responsável para pensar afinal naquilo que de grave se anda a fazer. Descobre-se qualquer coisa, retira-se essa coisa e tapa-se, tal como fazem a maioria dos empreiteiros (felizmente há excepções). Nem lhes faremos críticas, pois seguem de perto o exemplo oficial. Quanto ao resto, a profunda razão de ser deste lamento - de um cidadão que ama a cidade onde vive - tem a ver de facto com o capitel e a cabeça de touro, descobertos há poucos dias na vala que se abriu ao longo da Rua do Touro, e que o município fez recolher e salvaguardar nas suas instalações como lhe compete. Contudo, julgamos que, pelo teor da crónica que então escrevemos e que aqui de novo reproduzimos, teria sido aconselhável conhecer melhor o contexto arqueológico-histórico dos achados, pois não duvidamos que a cabeça de touro encontrada teve como primeira notícia histórica o texto que reproduzimos do padre Nolasco e que essa notícia aponta para algo mais importante que não distará muito do local da descoberta: o corpo de um touro, a somar às estruturas do edifício do período romano, visíveis no ex-restaurante “Os Infantes”, ao qual provavelmente pertencia.

In Diário do Alentejo de 23 Junho 2006


1 BORRELA, Leonel – “Igreja de S. João Baptista – II”. In Diário do Alentejo. Beja: Associação de Municípios do Distrito de Beja, 29 de Setembro de 1995.

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