quarta-feira, 20 de julho de 2011

O último grande edifício romano de Beja I

“O último grande edifício romano de Beja” é um título que por certo vai despertar a curiosidade dos nossos leitores, porém, ele transporta, além dessa sedução, a responsabilidade de num pequeno texto tentarmos discorrer sobre uma hipótese de reconstituição arquitectónica que nos parece viável.

Neste estudo vamos abandonar os capitéis coríntios com representação de folhas de acanto naturalistas, isto é, todos aqueles que apresentam as folhas recortadas e polilobuladas. Referimo-nos sempre aos capitéis maiores, todos em mármore de Trigaches, com cerca de 90 a 105 cm de altura, os quais Antonieta Ribeiro [1] data desde o século I ao II d.C..

Cingir-nos-emos aos seguintes elementos arquitectónicos: aos capitéis coríntios de folhas lisas, especialmente a dois deles [2], um, encontrado no restaurante “Os Infantes”, da rua dos Infantes, em Dezembro de 1982, datado do século III d. C. (RIBEIRO, 1999, 181-185) e o outro, similar, ainda inédito, encontrado na rua do Touro, em Julho de 2005; ao grande capitel compósito/coríntio (caracterização nossa), constituído por dois blocos, também descoberto n”Os Infantes” [3] , em Dezembro de 1982, datado do final do século I ou início do II (RIBEIRO, 1999, 245-256)[4] e à, ainda inédita, cabeça de Touro [5], da rua do Touro, descoberta no mês de Agosto de 2005. Aliamos a estes elementos o fuste fragmentado e liso, de 90 cm de diâmetro por cerca de 180cm de comprimento, que jaz na cave d “Os Infantes” acompanhado de parte de uma estrutura, in situ, de blocos graníticos bem aparelhados, alinhados sensivelmente no sentido EO, portanto, segundo um eixo paralelo ao Decumanus máximo (coincidente com a antiga rua do Touro e com uma calçada romana sob a rua dos Infantes) vindo das Portas romanas de Mértola. Este fuste é semelhante ao de 80 a 85 cm de diâmetro que se expõe no pórtico exterior do Museu Regional e a um outro existente no Parque de Materiais do Município. Por outro lado devem juntar-se, a todos estes elementos, as outras cinco cabeças de Touro (da mesma grandeza) mencionadas, em artigos anteriores, como fazendo parte, provável, do entablamento de um edifício romano, mais os dois capitéis compósitos de coluna, um deles proveniente da rua do Touro, datados de fins do século I ou inícios do II (RIBEIRO, 1999, 235-242), e as duas cornijas fragmentadas [6], também da mesma rua, com cerca de 115x45x85 cm, expostas na referida galeria exterior do museu. Na praça de armas do castelo são inúmeros os fragmentos de cornijas, bases e aduelas, provenientes desta área da cidade, entre as ruas dos Infantes e do Touro.

Deve salientar-se que as obras de grande vulto, dos edifícios do município e das finanças, realizadas nos anos cinquenta do século passado, apesar de situadas na área do fórum pacense, quase nada deram de material arqueológico, mas, quando se faz um buraco qualquer entre as ruas dos Infantes e do Touro, o resultado é surpreendente, como vemos. Será que o fórum está mais chegado para esta área, a do quarteirão entre o museu Regional e a praça da República, do que para a que tem sido convencional chamar de fórum, por estar mais de acordo com o “espaço desimpedido” da praça antiga? O templo estudado por Abel Viana, na área compreendida entre a rua da Moeda e o edifício das Finanças, situar-se-ia dentro do fórum ou fora dele? E de que período seria este templo? Teria integrado o fórum augustano, flaviano, outro ou nenhum? As suas estruturas serão de um templo ou corresponderão ao limite externo ocidental do terrapleno do fórum? As respostas são problemáticas, daí a necessidade de se proceder ao estudo integrado e sistemático do centro histórico da cidade [felizmente, a prospecção arqueológica, realizada por Conceição Lopes, nos últimos três anos,já demonstrou que o referido templo, um dos maiores da Hispânia, se situa no fórum, pelo que é de considerar os elementos arquitectónicos que estudamos como parte provável das estruturas de uma entrada monumental].

Julgamos que seria normal posicionar o fórum a partir de um ou dos dois eixos máximos da cidade (o Cardo – eixo NS – e o Decumanus – eixo EO), simultaneamente utilizados para definir a sua malha ortogonal (os arruamentos perpendiculares entre si)[7] . Podemos localizar o Cardo máximo entre a antiga porta romana de Vipasca (a da rua Brito Camacho, Muro baixo ou do Buraco) [8], passando pela torre medieval [9] da Travessa do Cepo, Beco da rua dos Infantes, Torre de Santa Maria em direcção, entre quintais, ao recanto da rua dos Pintores, situado entre as portas de Avis e as de Moura. Vamos contra a hipótese de Vasco Gil Mantas [10] que, julgando romanas as portas de Aljustrel (que eram medievais, demolidas em 1863) imagina a partir delas o Cardo máximo. Parece-nos, contudo, que se este eixo for localizado onde pensamos serve para estruturar melhor, com o auxílio do Decumanus da rua do Touro, o início do fórum (subentendendo que o seu início se observa a partir do lado este ou sudeste, de onde vem o Decumanus das Portas de Mértola, pois há outro, paralelo, que é axial às Portas de Évora e que deve prosseguir, mais ou menos, entre quintais, passando pela igreja de Santa Maria e largo do Ulmo) (11).

O fórum era, normalmente, rectangular e porticado, destinando-se às funções religiosa (templo), política (cúria) e comercial (basílica e mercado). Por exemplo, ao fórum de Trajano (98-117 d. C.), em Roma, acedia-se por um grande arco de triunfo de um só vão e, estamos convictos, que Pax Ivlia teria também uma construção desta natureza, provavelmente do período anterior, dos Flávios: Vespasiano, Tito e Domiciano. Só um grande edifício, bastante sólido, pode ter resistido ao tempo e à incúria dos homens. Uma construção repleta de colunas é mais frágil e sobrevive, naturalmente, menos tempo do que um arco triunfal, construção mais maciça. Nesta perspectiva, o capitel compósito/coríntio d “Os Infantes” deve ter integrado edifício bastante sólido, provavelmente de um só arco assente no lado coríntio, pilastras poderosas e colunas laterais também da ordem compósita (ver tentativa de reconstituição).

A afinidade entre os elementos que compõem esta tentativa de reconstituição tem a ver obviamente com o local onde foram encontrados, a mesma área, o mesmo mármore, de Trigaches/S.Brissos, o mesmo tipo de cinzelado com trabalho de trépano, a mesma escala e a relação coerente entre os diversos elementos que parecem apontar para um mesmo programa construtivo. Assim, tal como já dissemos anteriormente, seguindo as regras de Vitrúvio, de Vignhola e do bom senso [12], temos para as ordens compósita e coríntia a mesma relação entre os elementos arquitectónicos como consta do quadro anexo.







Portanto, feitas as contas teríamos um edifício com cerca de 14,4m de altura. Se tivesse sido um templo acrescentar-lhe-íamos a altura do frontão triangular; no caso do arco triunfal faltar-lhe-ia ainda o Ático, corpo normalmente paralelipipédico que se sobrepunha ao conjunto, destinado a receber baixos-relevos e inscrições alusivas à finalidade da obra: comemorativa, votiva, etc.. O arco adequado para assentar no capitel coríntio de pilastra, do capitel compósito/coríntio d”Os Infantes”, deverá ter cerca de 5m de diâmetro, medidos no intradorso. A época que propomos para todos os espécimes arqueológicos mencionados é a dos Flávios, final do século I d. C., pois foi o período de maior manifestação da ordem compósita, a mais barroca e exuberante de Roma, a qual deve estar de acordo com as reformas de Vespasiano. Como a maior parte dos investigadores é quase unânime na cronologia proposta para os capitéis compósitos de Beja – finais do século I ou inícios do II - julgamos que será a mesma cronologia, dado o contexto dos achados, para as cabeças de touro, cornijas, fustes lisos e capitéis coríntios de folhas lisas.

Esta tentativa de reconstituição não será evidentemente a última, pois trata-se de uma achega, deliberada e polémica, em torno das pedras que se vêem nos museus, as quais, no passado, estiveram colocadas num lugar preciso e tiveram o seu significado político, religioso, económico e social. Hoje vemo-las mais como obras de arte. Como desejamos apresentar ainda uma pequena planta da cidade com o posicionamento provável do fórum e uma outra tentativa de reconstituição do arco triunfal, com mais elementos e dispostos de outro modo, abordaremos então a possível relação entre as cabeças de touro, a lápide epigrafada dedicada a Serápis Panteo, deus dos deuses, e o culto mitraico.


1- RIBEIRO, Maria Antonieta Brandão S. – “Capitéis romanos de Beja”. Beja: CMB, 1999. pp. 145-160.


2- Há um terceiro a servir de alicerce na esquina do lado da Epístola da nave da ermida de S. Sebastião, extramuros, reaproveitamento que só demonstra, analogamente ao de muitos outros elementos arquitectónicos, uma necessidade prática e económica, independentemente da distância a que se encontrava a “pedreira” (ruínas do edifício original) que normalmente fornecia o material. Este, mostrámo-lo a Antonieta Ribeiro (1999, 181-185), enquanto os da rua dos Infantes foram alvo de pequeno artigo, em 1983, expresso na nota 3, infra-escrita.

3- BORRELA, Leonel – “Os capitéis romanos da rua dos Infantes”. In “Diário do Alentejo” de 15 de Janeiro de 1983.

4- Remetemos também o leitor para o nosso estudo sobre a época e características funcionais do capitel, particularidades que partilhámos com outros estudiosos bem antes de iniciarmos a Iconografia Pacense, em 1995. Cf. “Restos monumentais de Pax Júlia (IV)” in Diário do Alentejo” de 8 de Maio de 1998.

5- Cabeça que poderá ser a mesma que foi desenhada no “Diário” da viagem a Portugal de Perez Bayer, em 1782 (Cf. Abel Viana in “ Arquivo de Beja”. Ano 1944,Vol.I, p.44), e que meio século antes, em 1734, foi referenciada, como vimos, pelo padre Pedro Pires Nolasco.

6- VIANA, Abel – “Notas Históricas, Arqueológicas e Etnográficas do Baixo Alentejo”. In “Arquivo de Beja”. Beja: CMB, 1956. Vol. XIII, p. 146-147.

7- Característica de racionalidade urbana já utilizada, na Grécia, por Hipódamo de Mileto (séc. V a. C.). Cf. “Arte Romana”. Lisboa: Plátano, 2001. p.30

8- A qual visitámos, parcialmente, depois da autorização concedida pelo senhor Marçal, com o professor doutor Jorge de Alarcão, a quem apresentámos mais tarde (já lá vão uns quinze anos), numa breve troca de correspondência, uma tentativa de reconstituição desenhística das referidas portas romanas que seriam semelhantes às de Mértola, demolidas em 1876.

9- Torre e traçado, cuja localização deve ter muito em comum com a demolida igreja de S. João (templo romano? Cf. “Iconografia Pacense” in “Diário do Alentejo” de 22, 29 de Setembro e 13 de Outubro de 1995). Entre o hipotético templo romano, situado fora do fórum, mas não longe de uma das suas entradas, - talvez da sua principal entrada - e o espaço ocupado pela torre medieval, continuaria o Cardo máximo de Pax Ivlia.

10- MANTAS, Vasco Gil – “Teledetecção, Cidade e Território: Pax Ivlia”. In “Arquivo de Beja”. Beja: CMB, 1996.Vol.I, Série III, p.13.

11- Em trinta anos nunca vimos, em valas abertas nas ruas dr. Aresta Branco e da Capelinha, quaisquer vestígios de calçada romana que pudessem denunciar a presença do Decumanus axial às portas de Évora, ao contrário do que há um ano se pode observar, na antiga rua do Touro, na vala aberta ao longo do passeio que acompanha o cine teatro Pax Júlia.

12- MACIEL, M. Justino – “Vitrúvio - tratado de Arquitectura”. Lisboa: IST Press, 2006; VIGNHOLA – “Regras das sinco ordens de architectura”. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787. pp.53-54, Estampas 1, 3 e 35.


BORRELA, Leonel - "ICONOGRAFIA PACENSE- II" In Diário do Alentejo 30 Junho 2006






Tentativa de reconstituição de parte do alçado principal de uma estrutura romana (Arco Triunfal?) compósito/coríntia integrando alguns dos elementos arquitectónicos encontrados na área situada entre as ruas do Infantes, do Touro, abside de S. João e antiga rua da Torrinha. 

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